Hematúria

Vinicius Tapioca
@DrTapioca

Publicado em 09 de maio de 2009

Uma das experiências mais engraçadas que eu já vivi como médico foi quando um paciente idoso me procurou com queixa de hematúria (urina com sangue). Para proteger sua identidade vamos chamá-lo aqui de Seu João.

Seu João é um homem simples que mora numa casa pequena, num bairro popular de Amargosa. Embora aposentado e ganhando bem, ele prefere a vida humilde “pra não chamar atenção, né, doutor”. Vinha sentindo ardor ao urinar havia várias semanas e, como quase todo mundo numa cidade pequena, procurou o “farmacêutico” (balconista de farmácia, que não é farmacêutico, pois não cursou faculdade de Farmácia) que lhe indicou uma medicação equivocada e culminou com a piora dos sintomas e consequente hematúria.

Ao comparecer à primeira consulta e relatar o ocorrido, Seu João fez questão de trazer um pote de maionese (Hellmann’s, se não me engano) com um conteúdo avermelhado grumoso (indicando que aquela urina, além de conter sangue, já estava ali havia um bom tempo). De imediato solicitei uma cultura de urina e após o resultado mediquei de acordo com o antibiograma, solicitando em seguida uma ultrassonografia das vias urinárias e próstata, pra ver o tamanho do estrago.

No dia de fazer o ultrassom (agora com dois “s” segundo o novo vocabulário da língua portuguesa), Seu João chegou todo arrumado, cabelo cortado e barba feita (“no salão! Fiz hoje mesmo”) e, alegre, exibia outro pote de Hellmann’s (pelo menos eu acho que era outro) com uma bela urina cristalina, amarelinha e sem nenhum sedimento (“fiz nestante – neste instante – pra não ficar com ‘pedaços’ que nem a outra” – daí o vidro embaçado).

Sentou-se guardando o pote na sua bolsa de lona com a alça cruzando do ombro ao quadril e logo perguntou: “Esse exame demora muito?”. Respondi que não, mais ou menos uns 10 minutos.

Imediatamente ele sacou da bolsa um relógio de parede de cozinha, daqueles com frutas e verduras desenhadas nos números (naquele momento faltavam 20 para “berinjela”). Por cerca de três minutos ele tentou botar o tal relógio circular de pé na mesa do consultório (“É pra marcar o tempo, doutor, não gosto de exame muito rápido que não vê as coisa direito”). Ao perceber que seria impossível, ajudei colocando-o escorado no monitor com um peso de papel na base.

A segunda etapa foi deitá-lo na maca. Já sem camisa, ele não teve dificuldade de subir e sentar-se. O problema era deitar. Quando ele recostava o dorso, os joelhos dobravam e quando eu estirava suas pernas, o tronco subia e ele sentava de novo. Essa coreografia se repetiu várias vezes, me sentia dentro de um filme de Chaplin, só faltava o chapéu coco e o bigodinho estilo Hitler. Era como querer transformar a letra “L” num travessão, foi um parto, mas depois de muita conversa e várias tentativas, consegui deitá-lo e o exame foi executado com sucesso.

Ao final do atendimento, Seu João recolheu seu “reloginho” (já eram “berinjela” e meia) e partiu feliz, satisfeito com o serviço e curado. Nunca mais apresentou hematúria (graças a Deus!).

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9 respostas para “Hematúria”

  1. Samuel Varela disse:

    hauhauhauhauhaahhaua
    Muito bom…
    Dr. Tapioca e seus pacientes.

  2. Rafael disse:

    Muito boa essa série de comentários do Dr. Tapioca. Me divirto muito lendo eles. :D

  3. Anderson disse:

    Olá, sei que aqui pode não ser o lugar certo para a pergunta, mas vou faze-la pois sei que assim receberei resposta…

    Eu escuto o podcast e ouvi que um de vocês tem um blog que fala da vida com o filho…

    Poderiam indicar a url do blog.

    Desde já peço desculpas e agradeço.

  4. Carla Said disse:

    Adorei, Dr Tapioca…
    Fazia um tempo que não vinha por aqui…Adorei a nova roupage, principalmente o relógio que marca "beringela e meia"..muito bom!!

    rs abraços

  5. Carlos Eduardo Ramal disse:

    Muito bom!! Uma ótima relação médico x paciente que só melhora com o passar das beringelas! rs

  6. ony2005 disse:

    Uma figura esse Seu João.

  7. Estou tentando ver as horas aqui, dotô, mas não consigo. Eu acho que são morango e alface… o senhô faiz ezame de vistias???
    heheheh
    Muito bom, mesmo, dr! Ri de montão!

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