Apartormento (ou “Por que os médicos vão para o interior”)

Vinicius Tapioca
@DrTapioca

Publicado em 20 de maio de 2011

Seu Dotô!

21h

Final de um dia estressante no hospital. Depois de duas horas de engarrafamento, você entra com seu carro na rua estreita onde mora e descobre que tem um caminhão da empresa telefônica parado na entrada da garagem do seu prédio realizando “reparos emergenciais” em um poste. “Não tem onde parar sem fechar a rua”, diz o técnico. Você fica então preso no seu carro por mais “10 a 15 minutinhos”. Liga pra namorada tentando passar o tempo, mas, pra variar, o telefone toca até cair e quase consegue ouvi-la dizendo: “O celular estava na bolsa e eu não escutei”.

21h30

Ao entrar na garagem, você percebe que a vizinha estacionou ocupando um pedaço da sua minúscula vaga. Do outro lado, está a porta do armário de limpeza e, se parar muito próximo dela, é certo receber uma mossa “acidental” do zelador. Por causa disso, você é obrigado a estacionar colado no carro da vizinha (rezando pra ela sair sozinha na manhã seguinte). Também tem que se espremer pela porta do carona. Durante o processo, a alavanca de câmbio lhe acerta as “jóias da família” e a dor vai até o umbigo.

21h33

Você encontra no hall do elevador aquele vizinho de quem nem imagina o nome, mas que faz questão de cumprimentá-lo sempre que lhe vê. “Que coincidência encontrá-lo, doutor! Acabei de receber meu periódico, o senhor poderia dar uma olhada?”. Você sorri gentilmente e começa a olhar aquela maçaroca de resultados imaginando se o cara trabalha numa usina nuclear para precisar fazer tantos “exames de rotina”. No meio do processo, o elevador chega a seu andar e o vizinho segura a porta até você terminar a avaliação, que agora tem como música de fundo um irritante “piiiii…”. Ao final, você conclui que tudo está normal e ele agradece desejando uma boa noite (“tomara”, você pensa).

21h40

Já em casa, você “descasca” a roupa do corpo e vai direto pro chuveiro. Mais uma vez amaldiçoa o decorador que lhe convenceu que “diminuir um pouco do banheiro para ampliar o quarto, não vai atrapalhar em nada”. Queria vê-lo lavar as axilas sem conseguir abrir os braços. Se bem que aquele tampinha magricelo teria que abrir os braços pra não descer pelo ralo!

22h

Renovado e com um pijama bem folgado (os testículos ainda doem), você vai à cozinha procurar o que comer, mas a geladeira parece a Patagônia e, com certeza, nem Jamie Oliver conseguiria transformar meia cebola, três ramos murchos de coentro e uma maçã em jantar. Ao fechar a porta, percebe a lista de mercado que a empregada colocou após você já ter saído pela manhã (“Obrigado, Miralva”). A lista é tão grande que poderia ser resumida em duas palavras: “Comprar tudo”. A salvação é encontrada na despensa: um envelope de sopa instantânea e um pacote de cream cracker (melhor que miojo). Você come a maçã de sobremesa pra se convencer que fez uma refeição saudável.

22h20

Você checa seus e-mails e percebe que, após excluir as propagandas de Viagra, newsletters dos sites de compra e mensagens com anexos cujos títulos são “Que lindo!” ou “Adorei essa”, só sobram as faturas dos cartões de crédito. Desistindo da web, liga a TV, mas também percebe que não está interessado em saber quantas pessoas morreram por balas perdidas, quantos mísseis a Coreia do Norte lançou, nem quantos reais o combustível vai subir. O jeito é pegar aquele livro de cabeceira que você está enrolando há seis meses pra terminar e lê-lo até adormecer.

23h05

Você acorda assustado com o telefone tocando na maior altura – nunca descobriu como diminuir o volume (“Quem mandou comprar chinês”). Ao atender, reconhece a doce voz do outro lado da linha: “Mô, você ligou?”. Meio zonzo e com a voz embolada, tudo que consegue dizer é “Deixa pra lá, não era nada, não” e desliga sem dar tchau. Amanhã vai ouvir um “Você é grosso no telefone, sabia?”. Ao tentar dormir de novo, a lembrança de sua mãe lhe colocando na cama vem à mente. Ela sempre dizia: “Filho, estude bem pra ser médico e ter boa vida”. Boa noite, mãe.

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8 respostas para “Apartormento (ou “Por que os médicos vão para o interior”)”

  1. Camila Téo disse:

    Faltou um EU TAMBEM TE AMO pra mãe no final
    Sensacional Tapioca, SENSACIONAL rsrsrsrsrsrsr

  2. donattelo disse:

    uhahuahuhuahua….Eita vidinha boa essa. Por essas e outras que eu não tenho carro e não converso com os vizinhos nada além do básico "E aí, será que chove hoje?".

  3. Maria Luzia Reis disse:

    O bom disso tudo é que vc vai acordar no outro dia e falar com um belo sorriso: Bom dia pessoal, tudo bem?

  4. leda disse:

    kkkkkk… adorei mesmo assim estou feliz em ter feito o que pude para que paraque voce fosse o grande médico que voce é,pois sei que tudo que faz é bem feito. A prova está aí esta cronica. Linda!!!! Bjs

  5. Eva Rubia disse:

    Amei, maravilhoso!!!!!

  6. leda disse:

    Acordou com o pé esquerdo, hein Dr?

    Ainda bem que eu pulei fora dos conselhos da mamae!

    Muito legal!

    Bjs

  7. Mary Ramalho disse:

    É assim mesmo.É precisa ter muito controle.

  8. rita jorge disse:

    Dr. Tapioca, amei seu texto. Sou médica em sp há 15 anos e entendo sua experiencia na pele… mas tem certeza que sua mãe falou “médico”? Será que não foi “doutor” (advogado)?!!! Um forte abraço!

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