Gordo Kid: reminiscências de uma infância farta de alegria

Gordo Convidado
@papodegordo

Publicado em 18 de abril de 2010

Gordo Convidado

Episódio I – Hambúrguer et circences

O Circo Garcia faliu e desarmou sua última tenda no final de 2002. Um fim melancólico, embora anunciado, de um dos mais tradicionais grupos de espetáculos circenses do mundo, que teve seu auge entre as décadas de 1950 e 1960, importando artistas e exportando shows. No final da década de 1980 as coisas já não andavam tão bem, mas foi com olhos deslumbrados que aquele menino boquiaberto via uma enorme tenda azul e vermelha armada próximo ao terminal da Barra Funda, em São Paulo. Esse menino surpreso e ansioso, caminhando de mãos dadas com sua mãe e seus dois irmãos igualmente ansiosos em direção ao circo, era eu.

Aquela tarde foi mágica. Foi também engraçada e surpreendente. Nunca havíamos visto animais tão enormes e selvagens. O fato de estarem totalmente domesticados e inofensivos só seria revelado anos mais tarde, o que conferia àquela visão infantil certa aura de perigo e aventura. Os palhaços faziam rir com uma facilidade tamanha que jamais conseguiriam hoje. O picadeiro nem era tão grande, mas era infinito aos nossos olhos. Guardo até hoje uma pequena foto – que foi caríssima à época – colada no fundo de um pequenino cone de plástico, cuja extremidade mais fina possui uma lente, para que se aproxime do olho e a foto se amplie.

Terminado o espetáculo, era chegada a hora de comer. Era a primeira vez que minha mãe nos levava para um passeio e para comer fora. Nunca passamos fome, mas nossa infância foi marcada por dificuldades financeiras e por vontades não saciadas, o que sempre machucou muito minha mãe. Era, portanto, uma questão de orgulho pessoal para ela e tudo estava correndo bem até ali. Fizemos mais uma caminhada até o McDonald’s da Avenida Pompéia, um dos mais antigos da cidade, onde atualmente também está o imponente Shopping Bourbon, mas que há época abrigava o parco e falecido Shopping Boulevard. Hoje, acredito que isso tenha se perdido um pouco, mas naquela época, o McDonald’s era dotado de uma aura ainda mais mágica que a do circo. Comer lá era praticamente um evento. E tinha tudo para ser a tarde mais perfeita de nossas curtas vidas até ali e a realização de minha mãe, não fossem os inesperados e altos preços dos lanches que ficaram ainda mais impraticáveis depois que compramos aquela foto caríssima no circo.

Eu sou o irmão mais velho e já àquela altura compreendia algumas coisas e sofria com minha mãe. Meu irmão do meio ainda não tinha essa consciência e, influenciado que estava pela acachapante e massiva inserção comercial do novo Quarteirão com Queijo, não abriu mão de pedi-lo. A única forma de fechar essa equação era mamãe deixar de comer e eu e meu irmão caçula comermos o hambúrguer simples. Aquilo teve um peso tão grande e frustrante para minha mãe e para mim, que ficou marcado em nossas memórias e, durante um bom tempo, muito mais do que as apresentações no circo.

Quase tudo na vida é cíclico. Uma velha estória oriental conta que um rei abastado certa vez pediu a um sábio uma frase que resumisse a vida. O sábio escreveu a frase, mas o rei não teve tempo de ler e guardou-a. Esse mesmo rei, pouco tempo depois, perdeu seu posto para um opositor e perdeu também suas riquezas, foi expulso de sua terra e virou um mendigo. Foi então que ele teve tempo de ler a frase escrita pelo sábio, que dizia “Não será sempre assim”. O antigo rei juntou suas últimas forças, reuniu amigos, planejou suas ações e, árduos anos depois, retomou seu reino e suas riquezas. Quando finalmente pôde descansar, sentado em sua antiga poltrona de ouro e pedras preciosas, segurando uma taça do melhor vinho daquelas terras, abriu um velho pergaminho e leu: “Não será sempre assim”.

E não foi. Passados alguns anos, aproveitando todo o esforço de minha mãe pela minha educação, entrei numa universidade pública, arrumei um bom emprego e pude satisfazer vontades antigas e melhorar um pouco as nossas condições de vida. Há pouco tempo, quando almoçava na mesma lanchonete citada acima, desta vez sem restrições, comecei a prestar atenção à mesa ao lado, onde uma mulher lanchava com duas crianças. O menino, mais velho dos dois, estava eufórico e em dado momento agradeceu a sua tia – a mulher que acompanhava as crianças – por trazê-los ao McDonald’s, pois sua mãe não tinha dinheiro para isso. A cena me emocionou instantaneamente. Eu me vi ali, na voz do menino.

Foi naquele momento que entendi que pequenas coisas como comer numa lanchonete podem carregar um significado tão grande para uma criança, e percebi que momentos difíceis serão superados e seguidos por momentos melhores e que o que temos de fazer é aproveitar, pois momentos melhores talvez não durem para sempre. Antolim Garcia era filho de imigrantes espanhóis e provavelmente passou por dificuldades quando criança, no início do século passado. No entanto, fundou em 1927, em Campinas, São Paulo, uma companhia circense que chegou a figurar entre as quatro maiores do mundo na década de 1970. Foram mais de 60 anos de sucesso, para poucos anos de dificuldade dos Circos Garcia. Aquele menino gordinho, no final dos anos 1980, poucas horas antes de lanchar com sua mãe e seus irmãos, viu com olhos cheios um de seus espetáculos e aquele foi um momento mágico. Nunca mais deixe de aproveitar os seus.

Marcelo Salgado é bancário, profissional de mídias sociais, redator, formado em Letras e, com toda essa salada, só poderia mesmo virar “blogueiro-barra-podcaster”. Aliás, por falar em salada, sempre foi gordo e nerd, mas só admitiu isso quando virou moda. É o dono do Cumêcamão, blog de variedades sobre cultura pop e repositório do PodCumê, o podcast que é a segunda casa dos podcasters. Lá se fala de todos os assuntos com muito humor, convidados especiais e vinhetas engraçaralhas que o @neto chamou brilhantemente de “hiperlinks”. Marcelo sonha com um mundo onde as pessoas serão julgadas não por sua forma física, mas pelo conteúdo de seu caráter. E se o caráter for proporcional à forma, melhor ainda.

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2 respostas para “Gordo Kid: reminiscências de uma infância farta de alegria”

  1. Lidia disse:

    oi marcelo, que texto lindo! puxa vida! parabéns!
    eu gosto dos textos que falam da nossa vida, do que vivemos. se tornam quase contos, quase crônicas. e são tão singelos, tão reais…
    um beijão

  2. Que bom que gostou, Lidia! Obrigado!
    Pode ser que haja mais destes no futuro, se o Dudu aprovar as próximas crônicas. :P

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