Desconfraternização de Natal

Lucio Luiz
@lucioluiz

Publicado em 23 de dezembro de 2010

Gordo de Raiz, por Lucio Luiz

– A pessoa que eu tirei sempre chega atrasada no escritório e coloca a culpa no trem! Quem será, quem será?

Confraternizações de Natal no trabalho sempre começam mais ou menos assim. Frases engraçadinhas pra demonstrar uma intimidade que, na maioria das vezes, nunca existiu. Na prática, as pessoas querem mais é se livrar logo da obrigação dos presentinhos de 20 reais e partir para os salgados e docinhos de procedência duvidosa. Ao menos, essa era a intenção de Pereira.

Funcionário mais antigo do escritório, com dez anos de casa, Pereira suava que nem um porco no cio mesmo estando localizado de forma estratégica na direção dos poucos ventiladores. Até havia um ar condicionado split, mas o chefe quis economizar um pouco durante a confraternização, justamente quando todos os funcionários estariam juntos. Pelo menos ninguém queria ficar se esfregando no gordo suado, o que garantia um pequeno espaço livre em torno de Pereira.

– Quem eu tirei… é… um funcionário do escritório, hehe….

Sempre tinha um engraçadinho que fazia a clássica piada de dar dicas nas quais todos se enquadravam. Como ninguém prestava atenção no que os outros diziam, a piada do “é um funcionário do escritório” se repetia pelo menos três vezes a cada ano. E olha que eram apenas 15 funcionários, o que, segundo os cálculos de Pereira, sugnificava que a piada era usada por 20% das pessoas presentes.

Matemática sempre ajudava Pereira a se distrair do calor e da vontade de cair de boca no chester que parecia estar iniciando o processo de putrefação e nas rabanadas que provavelmente foram feitas com pão bolorento da semana anterior. Mas a fome era tanta que bastava engolir uma porção generosa de Coca-Cola sem gás pra disfarçar o gosto dos petiscos menos saborosos.

– Eu tirei uma pessoa inteligente, criativa e, que me perdoem, merecia muito mais do que um presente de apenas 20 reais! Nosso amado chefe!

Aquela rotina era cansativa. Todo ano, quem tirava o chefe dava um presente muito melhor do que um CD em promoção (80% dos casos, segundo as estatísticas de Pereira). Esse ano era a vez do rapaz recém-formado, que havia chegado no escritório no início do ano cheio de planos e projetos, querendo crescer por seu talento e criticava os puxa-sacos de maneira veemente. Hoje, dava um vinho chileno pro chefe.

Pereira já tinha dado o azar de tirar o chefe. Claro que só para ele era azar. Afinal, quando isso aconteceu, três anos atrás, foi a primeira vez que o chefe recebeu um presente dentro do limite de valor: um CD com uma coletânea do Jorge Vercillo. Curiosamente, a promoção que Pereira já dava como certa para o inicio do ano seguinte jamais veio. Ele nunca teve certeza se o problema foi não ter dado um presente caro ao chefe ou se foi culpa do gosto musical do patrão. Mas, poxa, ele adorava Djavan, não fazia sentido.

– Eu tirei um rapaz forte… bem fortinho…

A ironia era clássica. Quando era a vez de Pereira ser o presentado, a pessoa que o sorteara, no tradicional rasgo de intimidade suposta, fazia pequenas brincadeiras sobre seu peso. Pereira dava sempre uma risadinha, mas no fundo queria quebrar os dentes do amigo que poderia ter permanecido oculto para sempre. Mas, tudo bem, o que importava era que o suplício estava perto de terminar e ele poderia pegar um pouco das trufas paraguaias que estavam dispostas na ponta da mesa da comida.

Felizmente, esse seria o fim. Como Pereira era a penúltima pessoa a ser chamada, seu amigo oculto era o último. E, ser o último a ter que falar trazia a vantagem extra de que não seria necessário fazer nenhuma gracinha além do tradicional “Quem será?”, naturalmente desnecessário, mas que era esperado ansiosamente pelas pessoas que gostam de rir de piadas do nível “é um funcionário do escritório”.

– Quem será? Hehe… É a dona Mercedes.

Pereira fez a piadinha que todos esperavam, por mais ridícula que ele a considerasse. Abraçou a dona Mercedes, que, apesar do epíteto “dona” e do nome de velha era uma estagiária formosinha de 18 anos. Sorriu mais uma vez para as pessoas que aplaudiam o final do amigo oculto e se posicionou rapidamente em localização estratégica próximo à mesa da pretensa ceia.

Comeu, bebeu e, já satisfeito e empanturrado, se despediu de todos, aliviado por ter sobrevivido a mais uma confraternização de Natal. Porém, Pereira estava decepcionado. Ele novamente não teve coragem de fazer o que desejava há dez anos e que, se reunisse cojones suficientes, faria finalmente no ano que vem: mataria cada colega de trabalho de maneira cruel e desumana, empalaria seu chefe diante da porta de entrada do escritório, serraria com vida o FDP que deu pra ele o CD do Bonde do Tigrão e se refestelaria com a carne macia da dona Mercedes devidamente assada como se fosse um chester gigante. Papai Noel ficaria orgulhoso.

Ah, sim… Feliz Natal para todos!

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Uma resposta para “Desconfraternização de Natal”

  1. Lucio Luiz disse:

    […] Crônica originalmente publicada em 23 de dezembro de 2010 no Papo de Gordo. […]

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